Geni e o Zepelim é uma canção composta por Chico Buarque, e uma das peças mais populares do musical “Opera do Malandro”. Foi lançada entre os anos de 1977 e 1978, plena ditadura militar, e foi um sucesso. A população entoava a música, muitas vezes sem nem entender a mensagem que esta transmitia.
Geni, a personagem retratada pela obra representa uma travesti, mas também representa uma prostituta, também representa as mulheres do Brasil, e também representa o próprio Brasil.
A composição, em sua primeira estrofe, apresenta Geni, que não só é travesti, mas também prostituta, e trabalha com o pior tipo de clientes, ao menos, aos olhos da sociedade o pior tipo.
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Geni atende aos moleque do internato, aos loucos, aos lazarentos. Até se deita com os velhos. Ela é uma prostituta, provavelmente por falta de opção e oportunidade, e de certo modo, faz um serviço à sociedade ao se deitar com os excluídos que não conseguiriam amor de outra forma, ao passo que faz um serviço a si mesma, conseguindo seu sustento, entretanto, a população da cidade a despreza com todas as forças.
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
“Maldita Geni” é o mantra principal da obra. A cidade vivia seus dias de tal forma; desprezando-a. Utilizando os serviços dela, mas ao mesmo tempo atirando pedras nela. Da mesma forma em que o Brasil é o país que mais acessa pornografia travesti e transexual, mas também é o país com a maior taxa de assassinato trans.
Certo dia, um comandante irado aparece na cidade, voando em seu Zepelim cheio de mísseis e armas, pronto para destruir aquela cidade insignificante, mas, de repente, uma habitante da cidade o faz mudar de ideia.
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: “Mudei de ideia!”
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir
A dama que encantou o comandante e evitou uma catástrofe gigantesca foi Geni. Nenhum morador da cidade pensou que o comandante poderia se apaixonar pela travesti prostituta marginalizada a qual ninguém amava e ninguém nunca amou.
Essa dama era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Entretanto, Geni também é um ser humano. E ao se deparar com a possibilidade de se deitar com um homem rico e formoso, sentiu-se desconfortável, preferia os seus loucos e doentes.
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
A cidade inteira sempre tratou Geni como lixo, mas agora, o destino de todos estava em suas mãos. Todos que a maltratavam e jogavam pedras, agora suplicavam por sua bondade. Já que ela era prostituta mesmo, poderia fazer isso com facilidade.
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!
Agora o mantra “Maldita Geni” se transformou em “Bendita Geni”, a salvadora.
Em vista dos pedidos de todos da cidade, Geni se sentiu importante pela primeira vez, e decidiu seguir em frente e fazer amor com o comandante, mesmo contra sua vontade, para então salvar à cidade.
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Após o comandante poupar a cidade e partir, a prostituta travesti pensou ter mudado seu destino, pois agora seria considerada heroína, entretanto…
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Foi logo no dia seguinte que a hipocrisia voltou a reinar na cidade de Geni, e ela voltou a sofrer preconceito, hostilização e violência.
Não existe nenhuma declaração oficial de que Geni realmente era uma travesti, entretanto tudo indica a isso, afinal não são as travestis que são amadas em segredo, mas rechaçadas em público? Como a obra foi composta durante a ditadura militar, qualquer referência direta a uma travesti poderia ser barrada pela forte censura que acontecia na época.
A “teoria” de que Geni é uma travesti ficou popularizada na peça “Geni”, dirigida por André D’Lucca, que, em 2017, fez com que a canção voltasse a estar na boca do público, e, mais interessante ainda, trouxe uma atriz transexual (Bia Pinheiro) para interpretar o papel principal, o de Geni.
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